Paulo Vanzolini é um dos maiores biólogos do Brasil. Ainda é sambista de primeira. Sua música até hoje não sai da boca e do imaginário de todos nós: levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima
por Texto Mariana Lacerda
Ele assiste ao noticiário numa poltrona confortável. Está deitado, em um dos quartos do 1º andar de sua casa, sobradinho típico das vilas operárias da cidade de São Paulo, no bairro do Cambuci. Um cobertor de lã marrom o protege. Sente frio porque os 3 enfartes de 2004 fizeram calar dois terços do seu coração. Não dá vontade de sair, não é, professor? “Não, não dá.” Triste por isso? “Não”, responde tranqüilo, mãos mexendo o cabelo. Aos 84 anos, carrega a fama de “ranzinza”. Mas quem, entre amigos, filhos e netos, pesquisadores e jornalistas, senta-se perto dele, quebra logo o estigma. O boêmio parece quieto, mas a conversa continua. O homem embaixo do cobertor é Paulo Emílio Vanzolini, um dos maiores cientistas do Brasil, além de poeta de sambas memoráveis, como Ronda. Num entardecer de sábado chuvoso, 2 de junho deste ano, eu me sentei aos pés da sua cadeira para conversar. Este texto é o resultado desse encontro. Que começou a ser negociado 6 meses antes com Ana Maria Bernardo, a esposa de Vanzolini, que cuida da sua agenda: afazeres, dietas, entrevistas, homenagens.
Paulo Vanzolini viajou muito, ensinou muito, estudou muito, bebeu muito, e, diz ele, nunca sentiu dor-de-cotovelo, apesar de ter ficado famoso por letras que contam histórias de ciúmes, paixões desfeitas, desterro, saudade. Conversou o que pôde com todo mundo, de Stephen Jay Gould, um dos maiores paleontólogos do mundo, aos caboclos da Amazônia que porventura cruzaram seu caminho. Paulo Vanzolini tirou onda. E continua tirando. Conta piada que é uma beleza.
Vanzolini dedica sua existência a observar a vida: das matas, dos animais. Da política à ação da polícia no Rio de Janeiro (“um homem tem que ser muito humano para tornar-se policial”). Enxerga com apenas um olho (devido a um glaucoma) e é um daqueles raros observadores capazes de nos mostrar que o mundo é muito mais interessante do que supomos.
Veio daí seu trabalho como zoólogo e sua contribuição à ciência brasileira. Com a ajuda do geógrafo e compadre Aziz Ab’ Saber, elaborou a Teoria dos Refúgios, fundamental para entender a formação das nossas matas, cerrados e caatingas e o porquê de algumas espécies ocorrerem apenas em regiões isoladas. Veio também da observação da vida que corre nas ruas, nos becos do Centro de São Paulo, nas praças mal acordadas, nos bares sujos, a inspiração para os seus sambas. Você pode até não saber quem é Paulo Vanzolini, mas certamente lembra de uma música que diz assim: “Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. Pois é, trata-se de um samba dele.
Paulo Vanzolini é o responsável por organizar a coleção de animais do Museu de Zoologia da USP, a maior do Brasil, com 300 mil espécies. Em 1961, quando foi trabalhar no museu, criado em 1890, “nunca ninguém tinha se dedicado exclusivamente à coleção”, conta ele. O pouco material disponível tinha chegado até lá ao acaso. A coleção atual é um conjunto de bichos retirados geralmente do ambiente em que vivem. Mortos, estão conservados para que permaneçam em condições de estudo por centenas de anos. “Nela, está o caldo bruto de uma pesquisa em zoologia”, diz Vanzolini ,que, ao longo de seus 40 anos de profissão, percorreu 12 mil quilômetros de rios da Amazônia, “o melhor lugar do mundo”, com a finalidade de coletar outros bichos.
Alcançava a mata pelos rios conforme ficava sabendo, às vezes à boca miúda, da existência de algum animal que podia ser interessante. Não raro, também aconteceu de ir parar em uma comunidade apenas porque o acesso foi possível. Ele mesmo caçava, tinha habilidade para capturar sem machucar o bicho. Perdeu a conta de quantos animais coletou para a formação daquela que se tornou a 7a coleção mais importante do mundo, a do Museu de Zoologia da USP. “Cobre a América do Sul e tem o que precisa de outros continentes”, diz ele.
A Teoria dos Refúgios
Paulo Vanzolini quis ser zoólogo quando, aos 10 anos, foi subornado pelo pai. Isso mesmo, subornado. Um dia, seu pai, “apavorado”, prometeu-lhe uma bicicleta, caso entrasse numa boa colocação no antigo ginásio (5a série do ensino fundamental). Em 9 anos de escola, 6 de faculdade de medicina e 3 de pós-graduação em zoologia em Havard, disse uma vez que não gostava muito de assistir às aulas. Com os passeios no Instituto Butantan e estágio no Instituto Biológico, ambos em São Paulo, percebeu que o que mais o atraía eram os trabalhos sobre a evolução das espécies.
Foi esse o caminho que seguiu em seus estudos, e a Teoria dos Refúgios é, digamos assim, um afinamento da Teoria da Evolução de Darwin. Contando com a ajuda do também professor da USP Aziz Ab’ Saber, Vanzolini quis estudar as espécies de animais tropicais, com as quais, na época, pouca gente lidava. A pergunta era: por que em regiões do sertão nordestino, onde predomina a caatinga, emergem matas ou brejos? O que aconteceu foi que variações bruscas no clima, que esfriou e secou consideravelmente entre 2 milhões e 10 mil anos atrás, estabeleceram agrupamentos de paisagens distintas dentro da grande paisagem. Esses seriam os ditos “redutos”, ou os “refúgios”. Daí explica-se o fato de em lugares como o sertão de Pernambuco ou da Paraíba existirem os chamados brejos de altitude, que são pedaços de mata Atlântica em lugares secos. Ou, ainda, regiões de cerrado espalhadas em plena Amazônia.
A Vanzolini coube entender como as espécies de animais, isoladas nos refúgios, param de trocar genes para, assim, se diferenciarem entre si. Uma visão, na época, novíssima por considerar que, para entender de biologia, seria preciso levar em consideração a geomorfologia. Que dizer, a disciplina da geografia que estuda as formas do relevo da Terra, suas origens e evolução e da qual seu parceiro Aziz Ab’ Saber é a maior voz do Brasil.
E pensar que tudo começou a partir de uma lagartixinha cujo nome científico é Anfisbena fuliginosa e que existe nas regiões de dunas do Rio Grande do Sul até o Rio de Janeiro. Vanzolini, que estudava a lagartixa (“Criei meus 6 filhos olhando para esse bicho”), comentou com Aziz que, se acaso existisse um jeito de saber quando houve dunas contínuas entre os dois estados, seria possível construir a história da distribuição da espécie. “Ele então me disse que essa era uma das poucas coisas que ele sabia. Então puxou a bibliografia do assunto para mim.”
Um dia, sentado na diretoria do museu, chegou a suas mãos um envelope da revista Science, que solicitava o seu parecer sobre a publicação de um artigo assinado pelo alemão Jürgen Haffer. O assunto: diferenciação e distribuição de espécies, considerando refúgios. “Acabaram de nos passar a perna”, comentou Vanzolini com Ernest William, companheiro americano na pesquisa. Vanzolini, então, mandou seu material para o alemão, que estava na África do Sul, e acrescentou os artigos de Aziz para ajudá-lo. “E sabe o que ele fez quando recebeu o material? Jürgen Haffer pegou um avião e veio para cá. Ficamos grandes amigos.” Uma situação inusitada no mundo acadêmico, porque, em geral, coincidências assim geram confusão. “Pois é. Mas ciência quando não tem ciúmes, minha amiga, é uma coisa muito boa.”
Ronda
O biólogo José Márcio Ayres, que morreu em 2003, talvez compartilhasse da mesma idéia. Foi Ayres quem propôs ao governo do Amazonas a fundação da Reserva de Mamirauá, criada em 1996 e pioneira em alinhar conservação da natureza com desenvolvimento humano. A intenção era proteger duas espécies de macacos exclusivas dessa região de várzea. Uma delas é um macaco-de-cheiro que Ayres descreveu em 1985 e batizou de Saimiri vanzolinii.
“O fino gosto da homenagem”, escreveu o poeta amazonense Thiago Mello, em seu livro Mamirauá. “Que suponho tenha partido do descobridor do animalzinho faceiro ao mestre da zoologia, da poesia e da música popular, autor de canções daquelas que já não se fazem mais. Entre as quais uma que, embora termine em cena de sangue, todo mundo canta feliz, a começar por mim.”
Ronda (“De noite, eu rondo a cidade...”) é a primeira composição de Paulo Vanzolini, de 1945. Não foi feita em mesa de bar, embora o seu autor adorasse beber de bar em bar, pois, “quem fica em um só é bêbado”. Gravada na voz de divas como Maria Bethânia (de quem, diga-se, Vanzolini não gosta, pois, segundo ele, “ela cita e não canta”) e Maysa (adora), Ronda foi composta quando Paulo servia no Exército. “Estava no patrulhamento do baixo meretrício e via as mulheres que entravam no bar, olhavam e iam embora. Eu imaginava: o que pode ser isso aí?”, conta. Compôs uma crônica em que uma mulher ronda a cidade atrás de seu homem, prometendo, no caso de encontrá-lo “bebendo com outras mulheres, rolando dadinho, jogando bilhar: “Nesse dia, então, vai dar na 1a edição cena de sangue num bar da avenida São João”.
Pois, como diz Vanzolini, um samba nasce em torno de uma sugestão. “Inventa-se história para matar o tempo.” Praça Clóvis, outra música, é outro exemplo. Paulo conta que, numa manhã, esperava na praça o lotação que o levaria à faculdade. Observava as pessoas e os ladrões de carteiras. Daí veio a letra sobre o rapaz que teve sua carteira batida com apenas 25 cruzeiros e o retrato da moça. “Vinte e cinco, eu, francamente, achei barato. Pra me livrarem do meu atraso de vida”, lembra a letra da canção do mestre.
São cerca de 60 composições, na boca de gente como Chico Buarque. “O maior talento da música brasileira”, diz Vanzolini, que, freqüentador da casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, viu crescer e ajudou a criar o menino, que, aos 18 anos, conta Vanzolini, lhe mostrou seu primeiro samba. “Era Pedro Pedreiro, música e letra que não podem ser melhoradas”, diz ele.
Sentar aos pés da cadeira de Vanzolini é ouvir histórias assim. Como, por exemplo, a sucessão de “sortes” que afirma ter tido. “Tanta gente me ajudou que você não faz idéia”, conta. A começar pelo pai, “uma influência sem medida” na sua vida. “Ele tinha ângulos rigorosamente iguais”, diz, se referindo ao fato de ele ter sido engenheiro civil e elétrico e ainda ter realizado o sonho de ser professor da Politécnica da USP. “Um homem de prêmios, mas nunca exigiu isso de mim. Sempre disse: ‘Faça o que você quer, com simplicidade. Seja honesto e não se meta muito’.”
Por último, mais uma história que explica quem é Paulo Vanzolini. Ainda na Faculdade de Medicina da USP (onde se graduou), ele demorou 5 anos para concluir o curso de anatomia, que deveria durar 3. O motivo foi o incômodo com o que dizia o professor quando entregava as provas: “Respeito face ao material-cadáver, indigentes que resgatam suas dívidas com a sociedade servindo ao ensino dos médicos”. Ao ouvir isso, Vanzolini devolveu sua prova em branco, retirando-se da sala, rumo “a algum lugar onde indigente não tenha dívida nenhuma a resgatar com a sociedade”.