Laís Fontenelle Pereira, da Carta Capital
Educar nunca foi
tarefa fácil para pais nem para os educadores mais experientes. E a
contemporaneidade tem nos colocado novos e árduos desafios, principalmente no
que diz respeito ao consumo. Podemos dizer que, hoje, a formação de nossas
crianças não está somente nas mãos da escola ou da família, pois é
compartilhada com as diferentes mídias, atravessadas por mensagens de apelo ao
consumo. E aí está o maior desafio para os educadores: como integrá-las à
educação formal e ajudar o jovem a ter uma visão mais crítica sobre o que
consome? Como educar e formar nossas crianças para que sejam consumidores mais
conscientes no futuro? Antes de nos debruçarmos especificamente sobre o papel
do educador para a transformação da realidade atual, vale uma reflexão sobre a delicada
relação que a criança tem estabelecido com o consumo.
Vivemos num
mundo acelerado, ligados aos meios de comunicação e às redes -sociais desde o
momento em que acordamos até a hora em que vamos dormir. O tempo é outro, no
qual a conectividade e o consumo pautam nossa socialização. Nesses novos
tempos, crianças de todo o mundo têm consumido cada vez mais diferentes mídias
e, muitas vezes, realizam esse consumo de forma simultânea: ouvem rádio
enquanto navegam na internet, assistem à televisão lendo gibis, participam de
jogos interativos no computador ao mesmo tempo que falam ao telefone ou se
utilizam de outros gadgets digitais.
Apesar da
influência das novas mídias e da internet, vale destacar que, no Brasil, é a
televisão que ainda dita tendências de consumo. A criança brasileira é uma das
campeãs mundiais no tempo médio diário que assiste à tevê. De acordo com
levantamento do Ibope feito com jovens de 4 a 11 anos, das classes A, B e C,
ela passa quatro horas e 54 minutos diante da tela. Em áreas de maior
vulnerabilidade social e econômica, o tempo médio chega a espantosas nove horas
por dia. Um tempo de consumo que ultrapassa o período médio que passa no
ambiente escolar: cerca de três horas e 15 minutos, segundo estudo elaborado
pela Fundação Getulio Vargas em 2009.
Daí pode-se
dizer sem medo que a televisão tem sido um dos meios mais constantes no
processo de socialização e formação da criança brasileira. Aliás, é também a
forma de entretenimento preferida entre as crianças, à frente das brincadeiras
e mesmo de atividades como andar de bicicleta, segundo pesquisa realizada na
cidade de São Paulo pelo Datafolha em março de 2010.
Pedagogia
televisiva
Assim, outra
pedagogia se instalou à infância: a da tevê, que passou a ter o poder não só de
entreter, mas de informar e educar. O problema é que essa mídia educa para o
consumo sem reflexão, e não para a cidadania. O mercado enxergou no abandono
das crianças diante das telas uma grande chance de aumentar seus lucros e
passou a criar uma série de programações e produtos feitos sob medida. Foi
também nesse contexto que a publicidade dirigida às crianças entrou em cena com
força total e passou a endereçar ao público infantil mensagens de apelo ao
consumo de produtos voltados tanto a crianças quanto a adultos.
Esse tipo de
publicidade aproveita-se da vulnerabilidade infantil para vender e, como
resultado, a criança influencia até 80% das decisões de compra de uma família,
de acordo com pesquisa da InterSciense de 2003. Vitrines lotadas dos mais
variados brinquedos, merchandising dentro da programação infantil e até dentro
de escolas, produtos licenciados e embalagens chamativas são apenas algumas
técnicas de comunicação mercadológica utilizadas para atingir os pequenos. O
grande problema está no fato de que as crianças são seres em desenvolvimento
psíquico, afetivo e cognitivo e que a maioria delas, até os 12 anos, ainda não
tem a capacidade crítica e de abstração de pensamento formada para compreensão
total do discurso persuasivo dos apelos para o consumo. Além disso, as crianças
menores ainda confundem muitas vezes publicidade com conteúdo da programação.
Hoje, todos
somos impactados pela comunicação de mercado, que nos convida a consumir de
forma desenfreada e sem reflexão. Ainda em pleno desenvolvimento e, portanto,
mais vulneráveis que os adultos, as crianças sofrem cada vez mais cedo as
graves consequências relacionadas aos excessos do consumo. A publicidade
dirigida ao público de até 12 anos de idade gera impactos bastante negativos ao
desenvolvimento infantil saudável, pois contribui para o aparecimento de
problemas como o consumismo, a erotização precoce, os transtornos alimentares,
a obesidade, o estresse familiar, o consumo precoce de álcool, a violência e a
diminuição das brincadeiras criativas, entre outros. É claro que são todas
questões multifatoriais e que, portanto, a publicidade não é a única causa de
seu aparecimento. No entanto, já se sabe que é um dos mais importantes entre os
fatores que as causam.
Dados como os
mais recentes da pesquisa de Orçamento Familiar POF/IBGE de 2008/2009 nos
chocam ao mostrar que 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso e 15%
obesas por causa da ingestão descontrolada de alimentos ultraprocessados. Ou o
de que o acesso rápido ao consumo, independência e prestígio são os principais
motivadores de delitos entre os/as internos/as da Fundação Casa, indicou
pesquisa sobre o perfil realizado em 2006. Em relação ao consumo precoce de
álcool, estudo da Fapesp de 2009 mostrou que 62% dos adolescentes afirmaram ter
sido expostos quase todos os dias, até mais de uma vez, a publicidades de
bebidas alcoólicas. Não é coincidência que a idade na qual se inicia o consumo
regular de bebidas alcoólicas no Brasil esteja entre 12 e 14 anos.
Reinventando
as relações de consumo
O consumismo é,
portanto, um hábito que se tornou uma das características mais marcantes de
nossa sociedade. Mas nenhuma criança nasce consumista, e aqui vale uma reflexão
ética sobre quais hábitos e valores estamos transmitindo. Hábitos consumistas e
valores materialistas que priorizam o ter em detrimento do ser. O individual
acima do coletivo. A competição em vez da cooperação. Além de proteger a
criança legalmente da comunicação mercadológica que lhe é dirigida – como já
fizeram 28 outros países do mundo (incluindo os dez com melhor qualidade de
vida) –, precisamos prepará-la para que seja uma cidadã e consumidora
consciente e responsável.
Educar, assim, é
um ato político. O ponto central é que devemos trazer para ela a reflexão a
respeito do sentido e da responsabilidade do que consumimos como tema
transversal nas escolas. Essa é a base para uma educação voltada para o consumo
responsável. Precisamos começar a mudar nossos próprios hábitos de consumo,
além de educar nossas crianças para que tenham responsabilidade ao comprar.
Elas são o prefácio para um mundo mais ético e sustentável e têm nas mãos o
poder de reinventar as relações de consumo. Tudo depende da forma como as
educamos. Criança precisa ter infância para ser criança.
Isso posto, fica
claro que os educadores devem cumprir sua função social com as crianças, pois
têm diariamente a oportunidade de contribuir para a formação de agentes
autônomos, criativos e críticos. Consumir pode significar extinguir e destruir.
Enquanto educadores, temos o dever de parar e pensar: que infância estamos
construindo?
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