Patricia Fachin, do IHU On-Line
A
humanidade está movimentando cerca de 48 bilhões de toneladas de materiais por
ano, mas, desse valor, “30 bilhões viram lixo”, informa Maurício Waldman à IHU
On-Line. Na era do consumo descartável, as classes “abastadas” geram cerca de
1,5 a 2,0 kg/hab/dia de resíduos, enquanto entre os mais pobres o grau de resíduos
despenca para 0,3 kg/hab/dia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o
pesquisador esclarece que esses dados demonstram que as “estatísticas mascaram
contrastes sociais ao diluírem o volume total de lixo gerado dividindo-o pelo
conjunto da população”.
Para
reverter a produção excessiva de lixo, Waldman enfatiza a necessidade de “rever
os processos produtivos, que se pautam pela descartabilidade premeditada dos
produtos, que precocemente se tornam obsoletos”. E compara: “Em 1997, a vida
útil de um computador era em média seis anos. Mas, hoje em dia a validade
desses equipamentos foi abreviada para apenas dois”.
Autor do
livro Lixo: cenários e desafios (Cortez, 2011), ele também comenta o Plano
Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, que está em consulta pública no site do
Ministério do Meio Ambiente após permanecer 19 anos no Congresso. Entre as
críticas, Waldmanfaz referência às brechas para o avanço da incineração do lixo
no país. “Alemanha, Bélgica, Suécia, Irlanda, Países Baixos e os Estados Unidos
certamente possuem incineradores. Mas nesses países os índices de reciclagem
são respectivamente 48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Devemos salientar que a
última porcentagem refere-se aos EUA, considerado campeão mundial de
desperdício. Entretanto, como se sabe patinamos em míseros 13%! Como então
propor queimar lixo quando temos tanto o que avançar na recuperação dos
materiais descartados?”, questiona.
Maurício
Waldman é graduado em Ciências Sociais, mestre em Antropologia Social e doutor
em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese Água e
metrópole: limites e expectativas do tempo (2006). Cursou o pós-doutorado no
Instituto de Geociências da Universidade de Campinas – Unicamp. Foi professor
da Unicamp e atualmente é colaborador no siteGeografia e Cartografia –
Geocartoe do Centro de Estudos Africanos da USP – CEA-USP.
Confira a
entrevista.
IHU
On-Line – Desde quando o Brasil investe em
políticas públicas para tratar da questão do lixo?
Maurício
Waldman – A expressão política pública tornou-se
corriqueira nos últimos anos e ganhou um significado quase icônico no
imaginário social. No senso comum, a terminologia é entendida como um conjunto
de práticas que visam garantir a qualidade do serviço administrativo,
beneficiando o conjunto da população. Todavia, devemos recordar que o Estado
interage com diversas forças sociais, representativas de atores que, muitas
vezes, sustentam posições antagônicas entre si. Além disso, a gestão
administrativa é impactada por toda sorte de inferências culturais, sociais,
políticas e econômicas conjunturais. Com esses reparos em vista, já em 1830, em
pleno Primeiro Império Brasileiro, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro
manifestou-se a respeito da limpeza pública.
IHU
On-Line – E o que
ela dispôs?
Maurício
Waldman – Olha que curioso: os autos da
normatização consideravam que a atribuição do serviço de coleta de lixo, além
da limpeza, varrição das ruas, praças e logradouros, incluía a retirada de
loucos e bêbados que estivessem perambulando pelas vias da cidade, assim como o
apresamento de animais ferozes e de outros que pudessem incomodar a população.
Esse decreto demonstra de forma emblemática como a questão do lixo – ao se
inserir diferencialmente no tempo, no espaço e na cultura – induz diferentes
modos de apreciação e sistemas de gerenciamento dos resíduos. Para
complementar, seria pertinente recordar que, de um ponto de vista sociológico,
a ausência de “políticas públicas” não significa inexistência de normas
objetivas. Afinal, uma “não política” pública também é uma política.
IHU
On-Line– Considerando
o aumento populacional e a produção de resíduos, quais os maiores desafios do
Brasil em relação ao lixo produzido?
Maurício
Waldman – É preciso primeiramente
ressalvar que, de um ponto de vista geográfico e sociológico, não é correto
tecer correlações associando mecanicamente o aumento populacional com a geração
de lixo. Na realidade, o lixo tem se expandido numa proporção que ultrapassa em
muito o incremento demográfico. Para exemplificar, entre 1991-2000, a população
brasileira cresceu 15,6%. Mas os descartes expandiram 49%. Em 2009, o
incremento demográfico foi da ordem de 1%. Mas os rejeitos aumentaram 6%.
IHU
On-Line – Como
então observar o processo de geração de lixo?
Maurício
Waldman– Um recorte fundamental é o que
associa o lixo às dinâmicas socioespaciais. Então, mais do que a demografia,
pesam com muito mais ênfase as correlações sociais. Nesse exato sentido, os
resíduos sólidos brasileiros são extremamente dessimétricos. Isto é, possuem
analogias com as injunções que gravam a sociedade nacional com a marca da
disparidade. Nessa perspectiva, um aspecto matricial é o fato de fração
significativa do lixo domiciliar brasileiro ser gerado por pequeno número de
núcleos urbanos. As 13 cidades mais populosas do país (agregando um quinto dos
brasileiros) perfazem 31,9% do lixo residencial. Na sequência, as 200
municipalidades mais populosas (3,59% do total dos municípios brasileiros) são
responsáveis por 60% do lixo urbano.
IHU
On-Line– E do
ponto de vista social, como se coloca essa questão?
Maurício
Waldman– Um ponto a ser destacado
preliminarmente é que o Brasil tem sido recorrentemente apontado como um dos
países mais desiguais do mundo. Mesmo as políticas de geração de renda e
medidas de alcance social como Bolsa Famílianão têm alterado esse quadro geral.
O país se mantém na condição dos mais dessimétricos do planeta. Ora, não há
como as contradições sociais não estarem corporificadas no lixo. Num plano
meramente quantitativo, no Brasil a geração de resíduos oscila entre 1,5 e 2,0
kg/hab/dia (ou mais) de rebotalhos nas classes abastadas. Porém, esse
coeficiente desaba para 0,3 kg/hab/dia (ou menos) nos segmentos mais pobres.
Nesse
entendimento, fica claro que muitas estatísticas mascaram contrastes sociais ao
diluírem o volume total de lixo gerado dividindo-o pelo conjunto da população.
Assim, fornecem “médias” que refletem uma noção de cidadão abstrato e,
portanto, prestigiando responsáveis indiferenciados pelo descarte do lixo.
Alerte-se que as estatísticas mostram especial predileção em avaliar os resíduos
enquanto um resultado, esquecendo-se da sua filiação a processos, essenciais
para entender a maximização da geração de lixo no país nos últimos anos.
IHU
On-Line– O senhor
considera que o lixo pode inviabilizar a sociedade humana. Em que sentido?
Maurício Waldman
– Sim. Em dois sentidos:
quantitativo e qualitativo. Num dos artigos acadêmicos que disponibilizei nesse
ano, convidei os leitores a refletirem com base em montantes concretos de
rejeitos. Sabe-se que, do ponto de vista quantitativo, a natureza movimenta, em
seu ciclo normal formado pela movimentação da crosta, vulcanismo, processos
erosivos, etc., cerca 50 bilhões de toneladas de materiais por ano. A
humanidade, por sua vez, está movimentando 48 bilhões de toneladas no mesmo
período. É como existisse uma segunda natureza agindo no planeta! Duro ainda é
saber que desses 48 bilhões, 30 bilhões viram lixo. Daí que não há como não
perceber que o lixo está para tudo quanto é lado. Existe até mesmo um
continente artificial de detritos em formação no Pacífico. Trata-se de um
território formado por 100 milhões de toneladas de refugos, conhecido como
Grande Vórtice de Lixo do Pacífico. Estima-se que a superfície ocupada por esse
novo “continente” seja de 15.000.000 de km². Em suma: quase duas vezes a extensão
do Brasil, uma vez e meia a área da Europa, metade da África ou 8% da
superfície do Pacífico, o maior dos oceanos do globo terrestre. Assim, tendo o
problema do lixo assumido proporções tão dantescas, como discordar do geógrafo
francês Jean Gottman, que certa vez definiu provocativamente a época atual como
uma Era do Lixo. Quem ousaria dizer que ele está enganado?
IHU
On-Line– E no
sentido qualitativo, o que acontece?
Maurício
Waldman–Contrariamente às primeiras
civilizações da história, a sociedade moderna é a primeira na qual o lixo se
tornou eminentemente artificial. Dito de outro modo, ele é formado por
substâncias e materiais que são absorvidos com dificuldade pelos ciclos
naturais ou, então, representam um perigo real para todas as formas de vida. Note
que as três substâncias mais perigosas conhecidas pela ciência são resíduos: as
dioxinas (que resultam da combustão do lixo), o chorume (que provém da
degradação da fração úmida do lixo urbano) e o plutônio (que é o lixo nuclear).
Não há qualquer sombra de dúvida: se algo não for feito urgentemente, os
detritos poderão sepultar e envenenar a sociedade humana, afetando-a de um modo
que não têm precedentes.
IHU
On-Line– O lixo eletrônico também se
tornou um problema para a humanidade? É possível reciclar esse material?
Maurício
Waldman– Vários levantamentos confirmam
que tal classe de detritos representa cerca de 5% do lixo urbano planetário.
Seriam então 50 milhões de toneladas anuais de resíduo eletrônico, um volume
suficiente para lotar vagões ferroviários de carga dando volta completa na
circunferência terrestre. O preocupante é que esses rebotalhos poderão
simplesmente triplicar em poucos anos. Isso sem contar que já existem cerca de
4,8 bilhões de toneladas desse tipo de lixo amontoadas sabe-se lá como. E
retomando a questão da artificialidade do lixo contemporâneo citada na resposta
anterior, os restos eletrônicos são um estorvo ambiental de primeira linha. Um
simples monitor pode requerer 300 anos para se decompor. É perturbador saber
que a sucata eletrônica chega a perfazer 70% dos metais pesados presentes no
solo e em corpos aquáticos e que, ademais, é reciclada, quando muito, na
proporção de somente 10%. É claro, que a reciclagem por si só não resolve o
problema como um todo. Mas ajuda!
IHU
On-Line– Como
evitar esse problemanuma época em que a obsolescência tecnológica impera?
Maurício
Waldman– É preciso rever os processos
produtivos que se pautam pela descartabilidade premeditada dos produtos, os
quais precocemente se tornam obsoletos. Em 1997, a vida útil de um computador
era em média seis anos. Hoje em dia a validade desses equipamentos foi
abreviada para apenas dois. Desse modo, além das pessoas refrearem seus
impulsos consumistas, trocando de celular, de TV e de computador a torto e a
direito, a indústria tem que fazer a sua lição de casa. Definitivamente e de
uma vez por todas, a era do obsoleto tem que acabar.
IHU
On-Line – O senhor
aponta que os brasileiros descartam 5,5% dos resíduos planetários. O que esse
percentual representa, considerando o tamanho do planeta?
Maurício
Waldman– Muito ou pouco em si mesmo não
existe. Precisamos sempre recorrer a um enfoque relacional para melhor
aquilatar o significado real das cifras com as quais trabalhamos. Nessa
sequência, importaria ressalvar que, conquanto a população brasileira seja
equivalente a 3,0% do total mundial eque seu PIB corresponda a 3,5% da riqueza
global, descartamos 5,5% dos resíduos planetários. Não precisa ser matemático
ou geógrafo para notar a disparidade desses números. Mais ainda: que algo
profundamente errado caracteriza esse processo.
Outro bom
parâmetro é a metrópole de São Paulo. Faz tempo que a capital paulista consta
como a terceira cidade no mundo que mais descarta restos. Na competição em
gerar lixo, São Paulosó perde para Nova Iorquee Tóquio. Entretanto, quem disse
que São Paulo é a terceira cidade mais rica do globo? Não é de jeito nenhum. De
acordo com diversas fontes e na melhor das hipóteses, é o décimo PIB urbano
mundial. Então como pode ser a terceira no ranking de ejeção de lixo? Por
certo, o que podemos abstrair dessas cifras e das contradições que inserem, é
que o Brasil é um grande gerador mundial de lixo e, ao mesmo tempo, que sua
problemática de resíduos não é redutível a fórmulas econométricas clássicas.
Como disse, temos que começar a pensar processos e não apenas os resultados.
IHU
On-Line– O senhor
também destaca que apenas 13% dos resíduos secos gerados no país são
recuperados, e que apenas 2% são coletados pelos programas de Coleta Seletiva
de Lixo. O que dificulta,em sua avaliação, a adesão dos municípios brasileiros
à coleta seletiva?
Maurício Waldman – Há um aspecto objetivo que contribui, e muito, para explicar a razão da baixa inserção dos programas de Coleta Seletiva de Lixo (CSL) nos circuitos que abastecem a indústria recicladora. Indo direto ao ponto, um aspecto reporta ao seu elevado custo operacional. Conforme registrei no meu livro Lixo: cenários e desafios, as planilhas de custos e de retornos obtidos com a reciclagem apuram que para cada10 dólares investidos nos programas, a média da receita éR$ 1,30. Outro indicador é que o custo médio da CSL, orçado em US$ 221/t em 2008, é cerca de cinco vezes mais alto do que a coleta convencional. Claro que isso poderia ser objetado com o argumento que existem benefícios ambientais que nunca são contabilizados pelos economistas tradicionais. As aferições de custo são recidivamente contábeis e não visualizam o processo como um todo, particularmente nas suas interfaces ambientais. Mas do ponto de vista logístico, é inegável que ainda não foi inventado nenhum processo mais eficiente do que a catação. Nesse sentido, o interessante mesmo seria apoiar os catadores, que, na opinião de muitos especialistas, são com razão os grandes heróis ambientais do Brasil urbano. Os que dizem que a situação do lixo no Brasil está um caos, não fazem nem ideia das dimensões da catástrofe na hipótese de cessar a atuação dos catadores. Aí sim as pessoas veriam o que é calamidade de verdade.
Maurício Waldman – Há um aspecto objetivo que contribui, e muito, para explicar a razão da baixa inserção dos programas de Coleta Seletiva de Lixo (CSL) nos circuitos que abastecem a indústria recicladora. Indo direto ao ponto, um aspecto reporta ao seu elevado custo operacional. Conforme registrei no meu livro Lixo: cenários e desafios, as planilhas de custos e de retornos obtidos com a reciclagem apuram que para cada10 dólares investidos nos programas, a média da receita éR$ 1,30. Outro indicador é que o custo médio da CSL, orçado em US$ 221/t em 2008, é cerca de cinco vezes mais alto do que a coleta convencional. Claro que isso poderia ser objetado com o argumento que existem benefícios ambientais que nunca são contabilizados pelos economistas tradicionais. As aferições de custo são recidivamente contábeis e não visualizam o processo como um todo, particularmente nas suas interfaces ambientais. Mas do ponto de vista logístico, é inegável que ainda não foi inventado nenhum processo mais eficiente do que a catação. Nesse sentido, o interessante mesmo seria apoiar os catadores, que, na opinião de muitos especialistas, são com razão os grandes heróis ambientais do Brasil urbano. Os que dizem que a situação do lixo no Brasil está um caos, não fazem nem ideia das dimensões da catástrofe na hipótese de cessar a atuação dos catadores. Aí sim as pessoas veriam o que é calamidade de verdade.
IHU
On-Line– Como vê a
questão das cooperativas que devem gerir os resíduos sólidos, como sugere o
Plano Nacional de Resíduos Sólidos, aprovado em agosto do ano passado?
Maurício
Waldman– Em continuidade com o que
coloquei, os catadores são fundamentais para a gestão do lixo e manutenção dos
equilíbrios ambientais no meio urbano. Seria, nessa perspectiva, melhor
percebê-los pelo que de fato são: trabalhadores que se dedicam à recuperação de
materiais recicláveis. Todavia, recorde-se que, a despeito da capital
importância dos catadores, sua atuação encontra forte resistência em muitos
setores da sociedade. Pesa sobre os catadores o estigma da maledicência do
lixo.
Embora
seu trabalho seja útil e imprescindível, sua presença no campo visual incomoda
muitos setores abastados, o que explica desde a má vontade em apoiá-los até as
mais descaradas práticas persecutórias. Uma pregação constante, por vezes
apaixonada, coberta de objeções éticas e morais, eventualmente apelando para um
receituário com conotações racistas, pode ser notada no discurso de muitos
setores contra os catadores. Isso contribui para entender por que em 2010, do
universo de 5.565 municípios brasileiros, apenas 142– ou seja, 2,5% do
total–mantinham parceria com associações de catadores. Trata-se de uma
realidade que precisa ser alterada urgentemente, com a implementação de
políticas públicas efetivas favoráveis à catação.
IHU
On-Line – E as
cooperativas? Como tem sido sua implantação?
Maurício
Waldman – É importante lembrar que, apesar
de idealmente muito atraentes, as cooperativas têm avançado lentamente, sendo
uma das razões as dificuldades da sua implantação junto aos próprios catadores.
Convém não esquecer, a população catadora se consolidou ao longo de amplo
histórico de repúdio institucional e social. Muitos dos catadores são sem teto,
vítimas da exclusão e pessoas que perderam para sempre seus postos no mercado
formal de trabalho. Eles enfrentaram a solidão do desamparo, a falta de
oportunidades e a agressão contínua das instituições públicas. Não admira, pois
que aprenderam a agir por conta própria, base de um “empreendedorismo” que
alguns analistas identificam no comportamento da categoria.
IHU
On-Line – O que
fazer então?
Maurício
Waldman – A constituição de fundos
cooperativos, proposta endossada por especialistas favoráveis à remuneração por
serviços ambientais prestados pelos catadores– que eu pessoalmente entendo como
medida óbvia e premente–, enfrenta diversos obstáculos, que devem ser pensados
e/ou revistos com cautela. Dentre esses, o desafio de esboçar um desenho
institucional que permita uma gestão que não seja demasiadamente complexa para
ser operacionalizada. Além disso, riscos inerentes associados às atividades de
financiamento e microcrédito, caracterizadas por elevadas taxas de
inadimplência e conflitos potenciais com as agências financiadoras, devem ser
adequadamente administrados e diferencialmente monitorados.
IHU
On-Line – Como
avalia o Plano Nacional de Resíduos Sólidos– PNRS, que está em consulta pública
no site do Ministério do Meio Ambiente? Que aspectos deveriam fazer parte da
Política Pública de Resíduos Sólidos?
Maurício Waldman – Em primeiro lugar, tenho ressalvas relativas à euforia que muitos devotam ao PNRS. Estamos num país onde as leis podem “pegar” ou não. Aliás, o próprio PNRS teve um longo “parto” para ser aprovado: o projeto perambulou pelos corredores do Congresso durante 19 longos anos! Durante esse período, o país observou a multiplicação dos lixões, o descaso com a reciclagem e o descalabro da distribuição gratuita de sacolinhas pelo comércio.Mais: a ausência de um marco legal implicou na perda de milhões de toneladas de materiais úteis; impactou ecologicamente vastos espaços; trouxe prejuízos para a saúde da população; contribuiu para a persistência de posturas criminalizando os catadores. Isso apesar de, como foi colocado, tais trabalhadores prestarem serviço ambiental inestimável para a sociedade. Por fim, eudiria que, apesar da lei ser bem-vinda num país que se destaca na geração de lixo, ela tem abordagens que seriam passíveis de ajustes e correções.
Maurício Waldman – Em primeiro lugar, tenho ressalvas relativas à euforia que muitos devotam ao PNRS. Estamos num país onde as leis podem “pegar” ou não. Aliás, o próprio PNRS teve um longo “parto” para ser aprovado: o projeto perambulou pelos corredores do Congresso durante 19 longos anos! Durante esse período, o país observou a multiplicação dos lixões, o descaso com a reciclagem e o descalabro da distribuição gratuita de sacolinhas pelo comércio.Mais: a ausência de um marco legal implicou na perda de milhões de toneladas de materiais úteis; impactou ecologicamente vastos espaços; trouxe prejuízos para a saúde da população; contribuiu para a persistência de posturas criminalizando os catadores. Isso apesar de, como foi colocado, tais trabalhadores prestarem serviço ambiental inestimável para a sociedade. Por fim, eudiria que, apesar da lei ser bem-vinda num país que se destaca na geração de lixo, ela tem abordagens que seriam passíveis de ajustes e correções.
IHU
On-Line – Quais seriam esses aspectos?
Maurício
Waldman – O primeiro deles reporta a uma
questão conceitual. A temática do lixo está visceralmente associada ao modo de
vida moderno. Vivemos numa sociedade que –como dizia o pensador francês Abraham
Moles– produz para consumir e cria para produzir, num ciclo onde a noção
fundamental é a velocidade e a descartabilidade dos materiais enquanto vetor
fundamental. Ora, isso sugere que, além dos “R” de Reduzir, Reutilizar e
Reciclar –que constam no PNRS–, seria necessário agregar outro “R” ainda mais
essencial: o de Repensar as modalidades de produzir, consumir e descartar. Por
definição, lixo não se resume ao saquinho que colocamos na calçada. Sua gênese
encontra primeiramente abrigo em noções culturalmente aceitas de status e de
consumo, acepções que solicitam revisão urgente.
O PNRS
abre brechas para o avanço da incineração, o que na opinião de boa parte da
comunidade de especialistas do lixo é um equívoco a toda prova. Não adianta
tentar mascarar a incineração como sendo “verde” em razão de modelos mais
avançados recuperarem a energia do lixo. Isso é uma falácia. De um modo ou de
outro, os incineradores continuam a ser um problema.
IHU On-Line– Por quê?
IHU On-Line– Por quê?
Maurício
Waldman – Em primeiríssimo lugar, vivemos
no maior país solar do mundo. José Walter Bautista Vidal, engenheiro
responsável pelo ProgramaProálcoole considerado um dos cérebros privilegiados
da engenharia nacional, lembra que o Brasil recebe do Sol por dia energia
equivalente a– note bem– 320.000 hidrelétricas de Itaipu! Isso todo o santo
dia! Só esse argumento põe dúvidas sobre as tais usinas de incineração com
recuperação de energia, assim como para as mega-hidrelétricas e as centrais
nucleares. Em segundo lugar, dizer que estamos adotando tecnologia avançada de
primeiro mundo com os incineradores é uma colocação pelo mínimo mal-intencionada.Alemanha,Bélgica,
Suécia, Irlanda, os Países Baixos e os Estados Unidos certamente possuem
incineradores. Mas nesses países os índices de reciclagem são respectivamente
48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Devemos salientar que a última porcentagem refere-se
aos EUA, considerado campeão mundial de desperdício. Entretanto, como se sabe
patinamos em míseros 13%! Como então propor queimar lixo quando temos tanto o
que avançar na recuperação dos materiais descartados? E o que dizer do custo
desses equipamentos, da dependência tecnológica, das dioxinas, dos prejuízos
para a reciclagem e das perdas que serão arcadas pelos catadores?
IHU
On-Line– Qual é a maneira ideal de
descartar o lixo? Lixões e aterros sanitários são locais adequados para
concentrar tantos resíduos?
Maurício
Waldman– Costumo dizer que o essencial é
repensar nosso estilo de vida e, pela ordem, aplicar depois a Redução,
Reutilização e a Reciclagem. Portanto, não acredito que os aterros sanitários–
e muitíssimo menos os lixões– sejam uma solução ideal para gerenciar descartes.
Certo é que essas instalações fazem parte da sistemática de gestão do lixo, até
porque não existe sociedade que não gere rebotalhos. Essa história de lixo zero
é pura e simplesmente uma peça de ficção. Mesmo com procedimentos criteriosos,
teremos no final das contas que nos defrontarmos com restos que solicitam algum
tipo de disposição e/ou confinamento adequado. Que seja então, em face das
opções colocadas pela pergunta, o aterro sanitário. Nesses equipamentos, e ao
contrário dos lixões, pelo menos os efluentes líquidos (chorume) e gasosos
(metano), são drenados e monitorados. O que é fora de cogitação é a
continuidade dos lixões no nosso país.
IHU
On-Line– Qual a
responsabilidade do consumidor quanto ao destino dos resíduos sólidos e do lixo
produzido?
Maurício
Waldman– É muito grande! O consumidor é o
elo final da cadeia produtiva e de consumo. Como está colocado em Lixo:
cenários e desafios, toda vez que o consumidor repensa suas compras e o uso que
faz dos produtos, isso retroage positivamente no fluxo de materiais. Ou seja, é
menos ferro retirado da terra, mais água na fonte, menos centrais de energia
para serem construídas, mais alimento salvo do desperdício disponibilizado para
a população. O consumidor consciente, juntamente com uma sociedade participante
e um Estado atuante, é um ator privilegiado numa gestão integrada do lixo.
Contudo, é importante ressalvar que o Estado cumpre uma função essencial em
toda essa engenharia de gestão e monitoramento dos resíduos. Nesse sentido,
vejo que as políticas públicas para os rejeitos devem frisar uma educação
ambiental que atendaesse princípio básico.
IHU
On-Line– Que direcionamento deveria
existir para uma educação ambiental que atendesse essa prioridade?
Maurício Waldman– Creio que apelaria para o sociólogo Roberto Schwarz quando ele fala em ideias fora do lugar. Fico vendo a criançada na escola fazendo cartaz ambiental com pandas, baleias e o mico-leão-dourado. Também são comuns trabalhos centrados em florestas e outros ambientes que não fazem parte do dia a dia das pessoas. Ora, existe ideia ambiental mais fora do lugar do que isso? Indagaria: alguém manda e-mail para a baleia, é vizinho do panda? É cômodo demais dar aula sobre uma sustentabilidade que não integra o nosso cotidiano de vida.
Maurício Waldman– Creio que apelaria para o sociólogo Roberto Schwarz quando ele fala em ideias fora do lugar. Fico vendo a criançada na escola fazendo cartaz ambiental com pandas, baleias e o mico-leão-dourado. Também são comuns trabalhos centrados em florestas e outros ambientes que não fazem parte do dia a dia das pessoas. Ora, existe ideia ambiental mais fora do lugar do que isso? Indagaria: alguém manda e-mail para a baleia, é vizinho do panda? É cômodo demais dar aula sobre uma sustentabilidade que não integra o nosso cotidiano de vida.
Precisamos
na realidade é mudar as atitudes que integram as rotinas urbanas. No mundo
atual, precisamos antes de tudo apagar a luz quando saímos do quarto, fechar a
torneira quando não estamos utilizando água e por um ponto-final no desperdício
dos alimentos. E para aqueles que poderiam questionar que o “mundo selvagem”
estaria sendo deixado de lado, não nos deixemos enganar. Cabalmente, as
espécies estão ameaçadas porque a civilização moderna está consumindo como
nunca os recursos dos ambientes onde insetos, aves, peixes, anfíbios, répteis e
mamíferos vivem e se reproduzem. Portanto, quando apagamos a luz, fechamos a
torneira e segregamos o lixo estamos seguramente auxiliando na preservação dos
ambientes naturais em que essas espécies vivem.
IHU
On-Line– Deseja acrescentar algo?
Maurício
Waldman – Sim. De acordo como destaquei em
meu livro Lixo: cenários e desafios–aliás, obra finalista do Prêmio Jabuti 2011
no quesito melhor livro de Ciências Naturais –, as pessoas não podem se deixar
dissuadir por aqueles que não sabem o que não é possível. Todos devem fazer sua
parte, e só parar para verificar o andamento das coisas depois de terem
completado o seu quinhão. Então é isto: o lixo é um desafio para todos nós,
instigante não só pelas dificuldades, mas pelos projetos e expectativas que
insere. Boas notícias então: lutemos por elas!
(IHU
On-Line)