Grupo Balbo,
no interior paulista, é pioneiro no setor com a utilização de bagaço de cana
para geração de bioeletricidade
Por Texto Janice Kiss | Fotos Ernesto de Souza e Manoel Marques
A Usina São Francisco e sua vizinha Santo Antônio, em Sertãozinho (SP),
se abastecem de energia limpa gerada na indústria
Não é tão distante o tempo em que o bagaço e a palha da
cana-de-açúcar não passavam de estorvo nas usinas. O primeiro resíduo
costumava ser usado como ração animal ou apodrecia no canavial, e apenas
parte da palhada era reaproveitada para proteger o solo no plantio direto,
técnica que reveste a terra para ela não ficar exposta à erosão e à perda de
nutrientes. Mas, há 24 anos, as usinas Santo Antônio e São Francisco, em
Sertãozinho, no nordeste de São Paulo, foram pioneiras ao mostrar para o país
que esses renegados materiais tinham muito valor, especialmente o bagaço. Cerca
de 900 mil toneladas dele permitem que as propriedades sejam autossuficientes
em energia, com a geração de 50 mil quilowatts-hora. O diretor industrial Jairo
Balbo trabalhava há oito anos na empresa – tempos depois, transformada em Organização
Balbo – quando a família decidiu parar de desperdiçar tamanho potencial.
“Nunca foi segredo que essa biomassa é uma poderosa fonte de energia”,
comenta.
Pode não haver mistério, mas o rico subproduto da cana ainda está longe de
alcançar nobre utilização. Apenas 129 usinas das 432 instaladas no país
empregam tal tecnologia. Segundo Suleiman José Hassuani, pesquisador do Centro
de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba (SP), os principais entraves estão
no investimento para a troca das caldeiras de 20 bar (medida de pressão) para
as de 65 bar, eficientes para esse tipo de produção por conta da alta pressão
do equipamento; e no preço pago pelos leilões do governo federal (o mais
recente foi de R$ 100 por megawatt-hora), distantes dos R$ 200 do custo de
produção bancados pelo agricultor. Conforme dados da União da Indústria de
Cana-de-Açúcar (Unica), apenas 2% do consumo nacional de energia é suprido
pela bioeletricidade. Porém, a entidade não perde o otimismo ao projetar o
aumento desse percentual para 15% até 2020, equivalente ao potencial de três
usinas de Belo Monte.
Jairo Balbo, diretor, participa das inovações nas usinas. A cogeração de
energia foi uma das primeiras inovações
Jairo Balbo comenta que tais desvantagens iniciais nunca impediram que a
empresa, fundada em 1946, financiasse suas próprias mudanças. Segundo ele, o
pai, Menesis, falecido há quatro anos, era o grande incentivador de novos
projetos, porque nunca acreditou que somente a cana pudesse ser extraída de um
canavial. “A filosofia dele era sempre agregar valor”, relembra. Talvez seja
por isso que, em 1958, a família começou a fabricar etanol, quase 20 anos antes
do lançamento do programa Pró-Álcool, e, em 1987, se enveredou pela
produção de energia com venda de excedente (atuais 34 mil quilowatts- hora)
para a distribuidora Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), capaz de
atender a uma cidade de 500 mil habitantes – do tamanho de Ribeirão Preto –,
excluindo o horário de pico, das 18h às 21h. “Não havia sequer legislação na
época que regulamentasse esse tipo de fornecimento”, lembra Jairo. A eficiência
das duas usinas implicou na fundação da Bioenergia Cogeradora S/A,
empresa do grupo para administrar esse ramo de atividade.
O uso da energia que não polui o meio ambiente fez com que mais uma vez
a família fosse líder em inovação. A Bioenergia já vendeu R$ 5 milhões em
créditos de carbono para a União Europeia. Esse mercado nasceu com o Protocolo
de Kyoto, tratado internacional que permite que países desenvolvidos
compensem suas emissões de gases de efeito estufa por meio de projetos
elaborados por nações em desenvolvimento, desde que todos eles sejam
signatários do acordo. Além da eletricidade, a avaliação das atividades nas
usinas como um todo pesaram na aprovação desse projeto pelo Mecanismo de
Desenvolvimento Limpo (MDL), ligado às Organizações das Nações Unidas
(ONU). A liberação de gás carbônico (CO2), resultado da movimentação de
máquinas agrícolas e da indústria, é praticamente nula. Os canaviais sorvem
cerca de 30 mil toneladas desse gás de efeito estufa.
Passarada, macacos e uma riqueza de insetos amigos da plantação foram
identificados por um projeto que rastreou a biodiversidade da plantação
A conciliação entre natureza e agronegócio se estende por 14 mil
hectares de cana-de-açúcar orgânico, considerado o maior plantio do gênero no
mundo. Batizado de Projeto Cana Verde, com início em 1986, o grupo
tornou-se o maior exportador desse tipo de açúcar (recebeu o nome de Native),
com produção de 65 mil toneladas e presença em 65 países. Segundo Jairo, a
revolução na empresa teve mais uma vez o apoio incondicional do pai e a
dedicação apaixonada do primo, Leontino Balbo, responsável pela área. “A
mudança valorizou nosso negócio”, diz. Jairo não se esquece da década de 1980,
marcada pelos baixos preços do açúcar, alta dos insumos agrícolas e oscilações
no mercado internacional. “Foram os piores anos de resultados para a empresa”,
diz. Quem vê hoje a Native na lista dos 29 negócios considerados inspiradores
para a economia verde, segundo a ONU, não pode supor a infinidade de desafios
enfrentados em uma época em que a sustentabilidade não passava de ideal de
comunidades hippies.
A primeira transformação foi implantar a colheita mecanizada no
lugar da queima. Naquela época, eliminar o fogo do canavial era considerado um
ato de insensatez, já que não havia sequer colheitadeiras apropriadas. O primo
de Jairo deu um jeito e adaptou uma máquina tradicional para ela cortar,
aspirar e depositar a cana no caminhão. Tempos depois, o protótipo criado na
Usina São Francisco deu origem à primeira colheitadeira brasileira de cana
verde. A ausência da queimada logo criou um ambiente fértil para a proliferação
de insetos, que se alimentavam da cana com fome de leão. O contra-ataque veio
por meio do emprego de uma das práticas do manejo integrado de pragas (MIP),
com a liberação no ambiente da vespa Cotesia flavipes, que se alimenta da
broca, larva que roe a cana.
O potencial energético do bagaço da cana começou a ser testado pelo
Grupo Balbo há mais de duas décadas
Para José Roberto Parra, que coordena o laboratório de MIP da Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba (SP), o
manejo implantado no país há 40 anos foi uma resposta da comunidade científica
ao uso indiscriminado de agrotóxicos, que tornam os insetos mais resistentes,
contaminam alimentos e o lençol freático. “Quando 3% da lavoura de cana estiver
infestada pela broca, o produtor solta 6 mil dessas vespinhas por hectare. Aí é
esperar que elas façam o serviço”, explica. O eficiente inseto foi capaz de
reduzir as perdas nas lavouras de todo o país – que, na década de 1980,
chegavam a US$ 100 milhões por ano e agora não passam de US$ 20 milhões. O
Brasil conta hoje com 80 laboratórios, que produzem um exército de 60 bilhões
de vespas, liberadas anualmente em 3,5 milhões de hectares, quase metade da
área total de canaviais.
As práticas agrícolas do Projeto Cana Verde se associam a outras
parcerias com o meio ambiente. A rotação de culturas com crotalária controla os
nematoides. O solo vivo é alimento para os milhões de minhocas que o tornam
mais fértil, aerado e bem estruturado. E há ainda a fixação biológica de
nitrogênio, comum também na sojicultura. Conforme o pesquisador Gustavo
Xavier, da Embrapa Agrobiologia, em Seropédica (RJ), as bactérias da família
Rhizobiaceae presentes naturalmente nessas lavouras são potenciais fixadoras
desse elemento, que atua em todas as fases da planta – crescimento, floração e
frutificação – e as fortalece contra pragas e doenças. Elas também podem ser
aplicadas na forma de inoculantes (ou sementes inoculadas), para aumentar a
produtividade no campo. O uso dessa técnica proporcionou economia de US$ 6
bilhões por ano com fertilizantes nitrogenados ao país. O produto foi um dos
pilares da Revolução Verde, que deu à agricultura escala industrial no
século passado, mas pouco se comenta sobre o problema ambiental que causa ao se
infiltrar invisivelmente no solo, na água e no ar todos os dias.
Jairo Balbo comenta sobre outros exemplos adotados em favor da
sustentabilidade nas usinas. A vinhaça é usada na fertirrigação das lavouras –
no passado, o setor canavieiro costumava lançá-la como efluente nos
rios, o que poluiu águas e atingiu o lençol freático em algumas regiões – e a
água utilizada para lavar pisos, equipamentos, etc. é proveniente de reúso.
Segundo André Elias Neto, pesquisador do CTC, esse reaproveitamento é feito em
quase todo o segmento e representa um avanço e tanto se comparado os atuais um
a dois metros cúbicos de água gastos, por tonelada, de cana processada com os
20 metros cúbicos de 40 anos atrás. Ele destaca, ainda, o uso de outro
importante resíduo nos plantios de cana-de-açúcar: a torta de filtro, rica em
cálcio e fósforo, tornou-se um importante recurso para a adubação junto com a
foligem obtida por meio da lavagem das caldeiras.
Apesar de Jairo Balbo estar ligado à produção industrial das usinas, ele
não perde o encanto pela agricultura – afinal, é engenheiro agrônomo de
formação. Ele esteve ao lado da decisão do grupo quando o a empresa quis
dimensionar o tamanho da biodiversidade dos canaviais. Um programa feito com a Embrapa
Monitoramento por Satélite, em Campinas (SP), implantou o rastreamento da
fauna nas usinas. Os satélites radiografaram os animais que adotaram as
lavouras de cana-de-açúcar como moradia fixa ou temporária. Os resultados
apontaram a presença de 340 espécies (entre anfíbios, répteis e mamíferos) e
cerca de 70% delas são raras, como o tamanduá-bandeira, o mão-pelada e o
veado-catingueiro. A vida delas é assegurada por conta dos corredores
ecológicos (áreas que unem os remanescentes florestais), da preservação de rios
e nascentes e do plantio de 1,2 milhão de mudas de árvores. Para ele, é a
comprovação derradeira de que a natureza pode triunfar em plena área agrícola.