É
preciso superar a visão de currículo enclausurado nas disciplinas
Coordenadora do programa Município que Educa, no Instituto Paulo Freire,
a educadora ambiental Julia Tomchinsky tem experiência na elaboração,
desenvolvimento e acompanhamento de projetos de educação para a
sustentabilidade. Com mestrado em educação pela Universidade de São Paulo, tem
bacharelado e licenciatura em geografia pela mesma instituição.
Em entrevista ao Jornal do Professor, Julia Tomchinsky diz que a
responsabilidade de educar para a sustentabilidade é um desafio das escolas
neste século XXI. Segundo ela, a partir do surgimento do conceito escola
sustentável, diversas iniciativas têm surgido em diferentes países – Escolas
Verdes, Escolas Ambientais e Escolas de Desenvolvimento Sustentável, entre
outras experiências, têm demonstrado que a escola pode ser sustentável.
Entretanto, salienta, uma escola sustentável exige a reorientação curricular em
vista de práticas pedagógicas que eduquem para a sustentabilidade e promovam a
cidadania ambiental.
Jornal do Professor – O que é ser sustentável?
Julia Tomchinsky – O termo
sustentabilidade é frequentemente associado ao desenvolvimento sustentável, mas
é muito mais amplo do que a relação entre as dimensões econômica, social e
ambiental. Enquanto o desenvolvimento sustentável diz respeito ao modo como a
sociedade produz e reproduz a existência humana, o modo de vida sustentável
refere-se, sobretudo, à opção de vida dos sujeitos.
Ser sustentável é entender que a sobrevivência do planeta depende de uma
consciência de pertencimento e uma capacidade de escolher o que é melhor em
termos individuais (pessoais) e coletivos (públicos).
Ser sustentável é reagir perante a pobreza, o analfabetismo, as guerras
étnicas, a discriminação, o preconceito, a ganância, o consumismo, o tráfico, a
corrupção e tudo mais que tira a vida das pessoas e do planeta.
Ser sustentável é buscar uma cultura da justipaz (a paz como fruto da
justiça).
Ser sustentável depende da maneira como cada ser humano tem os seus
direitos assegurados para que possa contribuir na construção de sociedades
socialmente mais justas e ecologicamente mais equilibradas.
A sustentabilidade expressa um conjunto de princípios, valores, atitudes
e comportamentos que demonstram uma nova percepção que compreende a Terra como
um organismo vivo do qual os seres humanos são parte.
JP – A escola pode ser sustentável?
JT – A responsabilidade de educar para a
sustentabilidade é desafio das escolas neste século XXI. A sociedade se
transformava a passos largos e é ilusório acreditar que a escola no formato que
se apresentava, baseado em uma racionalidade instrumental quer reproduz de
princípios predatórios e valores insustentáveis, seja capaz de preparar alguém
para enfrentar a complexidade da vida.
Neste cenário, nasce o conceito de escola sustentável e iniciativas em
diferentes países, tais como Eco-Escolas, Escolas Verdes, Escolas Ambientais,
Escolas de Desenvolvimento Sustentável, Escolas Cidadãs, etc. Cada experiência,
ao seu modo, tem demonstrado que a escola pode ser sustentável quando questiona
o modelo de sociedade atual e promove modos de vida mais sustentáveis. Não
basta se concentrar em questões de ecoeficiência – tais como uso de fontes
renováveis de energia, minimização de resíduos, bioconstrução, etc. Para além
de adaptações de infraestrutura, uma escola sustentável exige a reorientação
curricular em vista de práticas pedagógicas que eduquem para a sustentabilidade
e promovam a cidadania ambiental a medida que os educandos aprendem a cuidar de
si próprios e dos outros, para então cuidarem de um ambiente comum e do
planeta.
JP – As escolas devem realizar ações de sustentabilidade? Por quê?
JT – Em todo o planeta foram multiplicadas
práticas alienadas e alienantes de interação da humanidade com o ambiente
vivido, de descaso com as gerações passadas, presentes e futuras. Perante a
impossibilidade de reversão dos danos causados e para sobreviver, a humanidade
precisa aprender a transformar a base de sua sustentação de modo sustentável e
com equidade social.
Mesmo com a crescente consciência planetária, ainda são muito tímidas as
mudanças no modelo educacional. No Brasil, pode-se afirmar que Paulo Freire foi
um dos primeiros educadores a denunciar e a demonstrar consistentemente o
caráter discriminatório e opressor do sistema escolar brasileiro, a sua
verdadeira intenção de se destinar apenas a uma elite.
Hoje a sociedade se caracteriza pela circulação de inúmeras identidades
e diversidades, o que exige a formação de sujeitos ativos com consciência de
pertencimento e com potencial para transformar o meio em que vivem em favor da
sustentabilidade. A construção dessa nova forma de existência no planeta
implica aprendizado sobre o lugar onde se vive – escola, bairro, casa, cidade –
e sobre como é possível transformá-lo num lugar de vida comunitária em que
criação da “vida que se vive” é construída solidária e democraticamente.
Há de se criar um entendimento comum sobre a necessidade de se
ressignificar as instituições escolares e de se adotar uma nova forma de
governabilidade dos sistemas de ensino, fundamentada na ação comunicativa, na
gestão democrática, na autonomia, na participação, na ética da sustentabilidade
e na diversidade cultural.
JP – Que tipos de ações de sustentabilidade podem ser realizados pelas
escolas?
JT – Ao reorientar o currículo, a
comunidade escolar como um todo tem a oportunidade de refletir sobre suas
práticas, resgatar, reafirmar, atualizar e vivenciar novos valores na relação
com outras pessoas e com o planeta. Esse movimento de ação-reflexão-ação pode
ser ampliado nas diferentes áreas do conhecimento. A questão que se coloca é:
como os conteúdos desenvolvidos na matemática, português, ciências, história,
geografia podem dialogar para despertar nos estudantes, a consciência de que
suas vidas não estão separadas do sentido do próprio planeta?
O desafio é superar práticas que burocratizam ou fragmentam a formação
para a consciência planetária. Não se pode educar para uma cultura da
sustentabilidade reservando dias, horários e disciplinas específicas para este
fim, ou por meio de pacotes pedagógicos prontos. É preciso superar a visão de
currículo enclausurado nas disciplinas e eleger eixos temáticos e temas
geradores que ofereçam ferramentas para a construção de um futuro sustentável.
Quando o currículo é organizado a partir de atividades e projetos que
articulam os interesses das turmas, a prática pedagógica oferece vivências
sintonizadas com a curiosidade do grupo e contextualizadas com a realidade
socioambiental local. Ao interagir, interpretar e se relacionar com uma
situação atribuindo-lhe sentido, os alunos passam a perceber o elo entre o que
se aprende e a maneira como se sente no mundo
No lugar das diferentes áreas do conhecimento, o currículo da escola
sustentável pode ser organizado em campos transversais:
a) Campo da ecopercepção: a educação dos
sentidos promove uma forma elaborada de perceber a complexidade do mundo,
permitindo a expressão através das diferentes linguagens que podem traduzir as
relações estabelecidas entre as pessoas - elas e o ambiente. Envolve todo o
universo lúdico do faz de conta, dos jogos, das brincadeiras e vivências nas
mais diferentes formas de expressão (oral e escrita, matemática, plástica,
musical, corporal, tecnológica, midiática).
b) Campo da
participação socioambiental: a educação política e ética prevê, provoca e
viabiliza o encontro entre diferentes sujeitos que compartilham espaços e
tempos, permitindo formar uma referência para além do seu próprio bem-estar.
Envolve as experiências de fala e de escuta, decisão coletiva, de autonomia, de
democracia e de participação, considerando o educando um sujeito de desejos e
capaz de contribuir para a gestão sustentável dos ambientes em que circula.
c) Campo da
ecologia dos saberes: a educação do pensamento valoriza as explicações e
interpretações do mundo, inclusive os saberes populares e das diferentes
culturas. Envolve as experiências de interesse em conhecer locais e histórias
distantes no tempo e no espaço, de compreensão da diversidade étnica e racial,
social, geográfica, histórica e ambiental.
d) Campo da
ciência ambiental: a educação propicia experiências e observações por meio da
ciência, que possibilitam uma aproximação do conhecimento científico e o
questionamento do senso comum. Envolve diferentes dimensões do processo de
construção do conhecimento: a observação, a investigação, a comparação, a
análise, a discussão, a elaboração de explicações sobre as coisas observadas
com relatos, registros e conceitos criados pelas próprias crianças.
Esses campos de vivência se inter-relacionam, favorecendo um trabalho
integrado e orgânico que respeita a autoria dos professores e a identidade das
turmas.
JP – Os gestores escolares podem obter bons resultados colocando em
prática ações sustentáveis?
JT - Assumida de forma transdisciplinar, a
reorientação curricular das escolas sustentáveis supera a fragmentação dos
conteúdos entre as diferentes áreas do conhecimento e viabiliza ações
sustentáveis localizadas. Além disso, não busca somente aumentar o conhecimento
do estudante, mas desenvolver a mudança de hábitos, atitudes, práticas sociais
e competências para a participação ativa na gestão ambiental do seu território.
Para alcançarmos sociedades sustentáveis é fundamental optar por práticas
pedagógicas que diminuem a distância entre o pensar e o fazer, de modo a
acolher o sentir no processo de intervenção no mundo.
Ao reorientar o currículo, outros ecos ressoam e capacidades
transdisciplinares são desenvolvidas: sentir, intuir, vibrar, imaginar,
inventar, criar e recriar; relacionar e interconectar-se, auto-organizar-se;
informar-se, comunicar-se, expressar-se; localizar, buscar causas e prever
consequências; criticar, avaliar, sistematizar, tomar decisões,
corresponsabilizar-se; ver nascer, tomar vida, crescer os sonhos, os projetos;
celebrar a criatividade e a capacidade humana de se reinventar.
JP – De que maneira os professores e gestores podem se preparar para a
realização de ações desse tipo?
JT – No Brasil, existem dois documentos de
referência elaborados pela sociedade civil que podem fundamentar a práxis
pedagógica dos educadores e gestores em ações de sustentabilidade. Conhecê-los
é um primeiro passo:
O primeiro é a Carta da Terra, uma declaração de princípios éticos e
valores fundamentais para a construção de uma sociedade global justa,
sustentável e pacífica. Resultado de uma década de diálogo intercultural em
torno de objetivos comuns e valores compartilhados, esse documento
internacional busca inspirar todos os povos a assumirem um novo sentido de
interdependência e responsabilidade compartilhada, voltado ao bem-estar de toda
a família humana, da grande comunidade da vida e das futuras gerações. A Carta
desafia a humanidade a examinar seus valores e a escolher um melhor caminho.
O segundo é o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis
e Responsabilidade Global. De caráter não oficial, ele foi celebrado em 1992
por diversas organizações da sociedade civil, na ocasião do Fórum Internacional
das ONGs e dos Movimentos Sociais, que ocorreu no Rio de Janeiro em paralelo à
Eco-92. Elaborado durante um ano de trabalho internacional, o Tratado contou
com a participação de educadores de crianças, jovens e adultos de oito regiões
do mundo (América Latina, América do Norte, Caribe, Europa, Ásia, Estados
Árabes, África, Pacífico do Sul). Além de apoiar a ação educativa, o Tratado
inspirou a criação de Organizações da Sociedade Civil e de Redes de Educação
Ambiental.
Ambos os documentos oferecerem elementos e indicadores para avaliarmos
nossa prática pedagógica e identificar o que precisa ser transformado na
perspectiva da educação para a sustentabilidade. Mais do que identificar
desafios, este exercício permite visualizar possibilidades dentro e fora das
escolas, tendo a clareza de onde quer se chegar. A partir daí, professores e
gestores podem articular a comunidade escolar para a leitura do mundo em que
vivem, identificando o que é de fato significativo e tem potencial pode se
tornar tema gerador do Projeto Eco-Político-Pedagógico (PEPP) da escola. O PEPP
pode ser inicialmente entendido como um processo de mudança fundamentado nas
experiências do passado e nas vivências do presente, que sinalizam novos
caminhos, possibilidades e propostas de ação educacional visando ao futuro
sustentável. Durante a elaboração do PEPP, necessariamente coletiva, dialógica
e democrática, são estabelecidos princípios, diretrizes e propostas de ação
para ressignificar as atividades desenvolvidas na escola e demais
potencialidades educacionais presentes na comunidade. Sua dimensão
eco-político-pedagógica é caracterizada pelo envolvimento dos diversos sujeitos
que se perceberam intrinsecamente conectados entre si, com a escola, com a
comunidade, com o local, com a região e com o planeta que compartilham.
JP – Como atrair pais, responsáveis e a comunidade em geral para a
realização de ações de sustentabilidade?
JT – A escola sustentável se caracteriza
por um projeto ecopedagógico que se abre em uma espiral de parcerias com a
comunidade em ações de sensibilização, de pertencimento, de
corresponsabilização e de intervenção organizada.
O diálogo permanente com a família e a comunidade exige a abertura para
que conheçam a rotina escolar, se sintam acolhidos e participem ativamente das
decisões. Reuniões, assembleias, encontros, feiras, mostras, exposições,
festivais, oficinas são ocasiões estratégicas para disseminar valores e
atitudes em prol de uma vida mais sustentável. Constituem-se como oportunidade
de integrar culturas e histórias de vida por meio de vivências que
problematizam a realidade e articulam ações de sustentabilidade.
Outra forma de envolver a comunidade é motivá-la a participar ativamente
na gestão democrática nos colegiados escolares, que podem contribuir para o
planejamento da vida escolar e a avaliação institucional. Quando conta com o
olhar e as considerações de todos os sujeitos que a constitui (crianças,
gestores, professores, familiares, funcionários), a escola tem mais elementos
para contribuir para a qualidade de vida da população.
Ainda, há a possibilidade de ampliar espaços de aprendizagem integral
quando a escola se articula às oportunidades de educação para a
sustentabilidade que existem no seu entorno (potencialidades individuais,
instituições, espaços públicos e privados, fontes de informação).
À medida que a comunidade estabelece relações horizontais, democráticas,
de confiança, de troca de informações, de colaboração, são estreitados os
vínculos entre o ambiente escolar, o local, a região e o planeta.
JP – Quais os países que se destacam na realização de ações de
sustentabilidade nas escolas? E de que forma?
JT – De maneira geral, as experiências dos
países do Norte tendem a se concentrar em questões de ecoeficiência e,
raramente, tocam em questões de justiça socioambiental ou se traduzem em
políticas públicas.
No Brasil, este tipo de reflexão tem avançado significativamente. No
Plano Nacional sobre Mudança do Clima está prevista a criação de espaços
educadores sustentáveis nas escolas e universidades brasileiras, uma estratégia
para o enfrentamento das mudanças globais. Este documento conceitua os espaços
educadores sustentáveis como aqueles com intencionalidade pedagógica de ser uma
referência concreta de sustentabilidade socioambiental.
Em 2010, o MEC aprovou o Programa Mais Educação e, entre os princípios
da Educação Integral, definiu o incentivo à criação de espaços educadores
sustentáveis com a readequação dos prédios escolares (incluindo a
acessibilidade), a reorientação dos mecanismos de gestão escolar, a ampliação
de formação de professores, a inserção das temáticas de sustentabilidade
ambiental nos currículos. Como desdobramento, a Coordenação Geral de Educação
Ambiental do MEC lançou o Projeto Escolas Sustentáveis.
Além disso, ocorrem experiências de escolas sustentáveis desvinculadas
de políticas públicas em todo o planeta há tempos. A maioria desenvolve modos
de vida mais sustentáveis no seu cotidiano a partir do diálogo entre diferentes
saberes e conhecimentos (científicos e populares). O desafio é ampliar essa
realidade para além das escolas e introduzi-las nas políticas públicas.